Luta antimanicomial


O mês de maio foi dedicado a uma questão muito importante dentro das políticas de saúde pública no Brasil: a luta antimanicomial. O Movimento da Luta Antimanicomial refere-se à luta pelos direitos das pessoas com problemas relacionados à saúde mental, no qual está inserido o combate à ideia de que se deve isolar a pessoa com sofrimento mental. Esse movimento traz a discussão do direito dessas pessoas à liberdade, à vida em sociedade e à escolha das formas de cuidado e tratamento. Para que possamos conhecer melhor o tema, convidamos o Dr Rodrigo Martins Leite, diretor dos ambulatórios Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (FM/USP), Mestre em Políticas e Serviços de Saúde Mental da Universidade Nova de Lisboa (Portugal) e Docente da Faculdade de Medicina da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) para uma entrevista.

Fisioterapia ICHC: O que é a luta antimanicomial?
Dr. Rodrigo: A luta antimanicomial é uma luta de preservação dos direitos dos portadores de transtornos mentais. Ficou com esse nome porque os manicômios eram, ao longo de toda a história do Brasil, mais precisamente nas últimas décadas do século XX, depósitos de pessoas, em que a qualidade da assistência, da alimentação, das instalações, da segurança do paciente eram muito ruins. Então o manicômio acabou sendo sinônimo de um lugar inadequado e que não se prestava à realização de nenhum tratamento. Disso deriva o termo “luta”, e isso também indica que deve haver uma vigilância constante contra instituições dessa modalidade que sejam de má qualidade e tenham impacto negativo na assistência e até na segurança desses pacientes.

Fisioterapia ICHC: Qual é a posição das associações médicas em relação à luta antimanicomial?
Dr. Rodrigo: Infelizmente, a luta antimanicomial não conseguiu pactuar com as sociedades médicas, principalmente a Associação Brasileira de Psiquiatria, com a qual vive em conflito. Creio que existem determinantes políticos que acabam dificultando o diálogo entre as duas partes e acabam enfraquecendo a política de saúde mental, em consequência dessa falta de sinergismo.

Fisioterapia ICHC: Reforma Psiquiátrica e luta antimanicomial são conceitos distintos, porém intimamente relacionados. Poderia discorrer sobre isso?
Dr. Rodrigo: Na verdade, o termo “reforma psiquiátrica” é controverso. O que houve no mundo todo é o que se chama em inglês “mental health reform” (reforma da saúde mental, reforma da política de saúde mental). O título que foi escolhido aqui no Brasil mencionando a especialidade da psiquiatria me parece que foi um fator que contribui já de cara para que houvesse uma antipatia e até uma animosidade entre a psiquiatria e a nova política de saúde mental.
A Reforma de Saúde Mental (ou Psiquiátrica, como foi chamada somente no Brasil) diz respeito ao tratamento do portador de transtorno mental na comunidade, em serviços abertos, com o recurso da internação somente em situações muito graves, e tendo o intuito de ressocializar o indivíduo e inseri-lo na rotina de sociedade, da família, da comunidade.
No Brasil, esses dois campos se misturaram. Houve um campo da prática política, ideológica, da luta antimanicomial no bojo da Reforma Psiquiátrica, que foi uma reforma baseada em preceitos técnicos e de ocorrência no mundo todo, principalmente Estados Unidos.
Creio que isso também acabou por afastar a psiquiatria da reforma da saúde mental. De maneira geral, foi um momento muito confuso, de abertura política, final da ditadura e início da redemocratização, em que as questões políticas ainda estavam muito pouco claras, o que acabou misturando tudo e enfraquecendo a política de saúde mental, gerando uma tensão constante entre psiquiatras de um lado, ideólogos e o pessoal que estava constituindo os novos serviços dos CAPS de outro.

Fisioterapia ICHC: Qual é o papel dos psicofármacos no processo de desinstitucionalização do paciente psiquiátrico?
Dr. Rodrigo: Acho que os psicofármacos têm um papel fundamental na redução das internações, desde o início da década de 50. Lembrando que o primeiro antipsicótico foi comercializado em 1952, então estamos falando de mais de 60 anos de psicofarmacologia moderna. Sem dúvida eles têm um impacto positivo na prevenção de internações, de eventos adversos, de riscos para o paciente e para outras pessoas. Mas ainda acho que ela precisava avançar no sentido de realmente facilitar a inserção do indivíduo, principalmente aquele com transtorno mental grave, no mercado de trabalho, para que ele tenha reais condições de paridade na luta social, no relacionamento entre as pessoas, na competitividade da sociedade. Quem faz uso de psicofármacos, principalmente antipsicóticos, acaba tendo dificuldades cognitivas e outros efeitos colaterais que, apesar de evitarem crises mais graves, ainda contribuem para o estigma e a marginalização desse indivíduo e a sua não-inserção de fato. Evidentemente, não se pode atribuir toda essa responsabilidade ao psicofármaco no que diz respeito ao estigma, mas acho que as pesquisas em psicofarmacologia precisam caminhar no sentido de promover de fato substâncias com menos efeitos colaterais, sem os prejuízos cognitivos. Sabemos, por exemplo, que muitas medicações acabam impedindo o paciente de ter vida sexual, de relacionamento íntimo. Essa é uma questão que precisa ser encarada e sobre a qual se fala muito pouco. Acho que os benefícios já são evidentes, mas precisamos aprimorar essas moléculas e encaminhá-las no sentido de melhorar a qualidade de vida dos pacientes

Fisioterapia ICHC: A luta antimanicomial traz em seu bojo a ideia de que o paciente deve ser visto pela ótica da autonomia e protagonismo. Na sua opinião, esse visão teve reverberações na clínica psiquiátrica em geral?

Dr. Rodrigo: Realmente, a ideologia da luta antimanicomial entende que o usuário tem que ser visto como indivíduo autônomo, protagonista, cidadão, com voz ativa. Isso representa um avanço e uma vanguarda no que diz respeito aos direitos dessa população que historicamente sempre teve seus direitos tolhidos. Acho que isso, apesar das brigas internas na área de saúde mental, influenciou a prática psiquiátrica, sim. De uma forma geral, isso trouxe para o psiquiatra uma dimensão de que a internação não era a solução que se imaginava, não era a oitava maravilha do mundo, que a eletroconvulsoterapia também não é a oitava maravilha do mundo, apesar de ser útil em algumas situações. Creio que trouxe um certo olhar crítico para o psiquiatra em relação a certos preceitos que eram inquestionáveis. Foi possível avaliar a efetividade de nossas intervenções, questioná-las, pesá-las em termos de risco/benefício, em termos de avaliar se é benéfico tirar um indivíduo da sociedade por muito tempo, se isso não gera uma marginalização e dificuldade de inserção na sociedade. Acho que isso contribui para a modernização da psiquiatria, que até os anos 50 e 60, no mundo todo, era muito baseada no modelo hospitalar, no modelo de internação. Essa dimensão do paciente como cidadão e como consumidor do serviço de saúde, junto com sua família e o entorno – tudo isso trouxe uma modernização da prática psiquiátrica clássica.

Fisioterapia ICHC: Uma das preocupações da luta antimanicomial é a não-redução do paciente à doença. Nesse sentido, o senhor acredita que as equipes multidisciplinares contribuem para que o paciente seja abordado em sua condição integral de sujeito?
Dr. Rodrigo: As equipes multiprofissionais são fundamentais nessa nova prática de saúde mental. Infelizmente, as universidades ainda não preparam os indivíduos para trabalhar em equipes multiprofissionais de fato. Vivemos numa realidade acadêmica em que médicos ensinam médicos, fisioterapeutas ensinam fisioterapeutas, etc. Então nós já saímos da faculdade sabendo minimamente como funciona a nossa própria categoria, mas não como a nossa prática profissional conversa com outros profissionais. Essa questão da interprofissionalidade ainda é uma fronteira, no Brasil, ainda é uma fronteira a ser desbravada, e isso tem impacto na qualidade da assistência multiprofissional que é ofertada em todos os campos, e em particular na saúde mental. Acho que o foco nas habilidades sociais desse indivíduo, o foco no dia a dia, nas atividades diárias, nas limitações psicossociais sem sombra de dúvida são potencialmente mais bem assistidas por uma equipe multiprofissional que tenha um funcionamento adequado. Então essa aposta na equipe multiprofissional é fundamental para a recuperação de pacientes com transtorno mental. Pensando em termos de Brasil, pouquíssimas pessoas teriam condições financeiras de custear uma equipe multiprofissional para assistir algum paciente com transtorno mental persistente. E nós temos isso nos CAPS gratuitamente. Acho que os detratores da política de saúde mental precisam entender que realmente houve um avanço enorme. Se as equipes não funcionam direito é por outras questões, como a já citada formação universitária, mas o investimento que a política de saúde mental fez nas equipes multiprofissionais é algo impagável num contexto particular ou de convênio. Somente uma parcela ínfima e abastada da sociedade conseguiria contar com um psicólogo, um educador físico, um terapeuta ocupacional, etc.
Acho que devemos entender a inclusão da equipe multiprofissional dentro desse paradigma de resgate do indivíduo como um grande avanço técnico, mas que ainda precisa de reavaliações quanto à efetividade das intervenções e aos modelos que precisam ser aprimorados. Mas não podemos perder de forma alguma a perspectiva multidisciplinar dentro da saúde mental

Fisioterapia ICHC: Ainda sobre as equipes multidisciplinares, que impacto elas têm na saúde do paciente e na concepção que os próprios psiquiatras têm sobre o cuidado em saúde mental?
Dr. Rodrigo: Acho que a gente tem dois públicos: os psiquiatras da rede pública e os que trabalham exclusivamente em consultório ou em atendimento de convênio.
Acho que o psiquiatra que trabalha na rede pública entende melhor a importância da equipe multiprofissional pelo convívio diário, pelo trabalho conjunto, pela elaboração de planos terapêuticos, pelo dia a dia. A meu ver, o modelo da psiquiatria enquanto especialidade médica ainda é muito solitário, ainda prepara o indivíduo somente para uma prática de consultório, que é uma prática limitada, que envolve somente o médico e o paciente. Como temos discutido ao longo das minhas respostas, esses pacientes frequentemente precisam de outros profissionais para complementar o tratamento, a assistência exclusiva de consultório acaba sendo uma assistência deficitária. Na faculdade, não aprendemos o papel dos outros profissionais, e isso, a meu ver, é um problema muito grave. Em resumo, o psiquiatra da rede pública tende a ver melhor a importância da equipe dentro de um planejamento terapêutico, diferentemente do psiquiatra formado de maneira mais tradicional, que tem dificuldade em entender como outros profissionais podem compor o planejamento de tratamento dos pacientes. Estudos desde a década de 60 tem resultados favoráveis à contribuição das equipes profissionais no bom desfecho em saúde mental, mas quando se fala em equipe multiprofissional é preciso falar do tratamento em rede. Não basta uma equipe multiprofissional num serviço como o CAPS. Esse paciente precisa estar inserido numa unidade básica de saúde, precisa ser atendido por um médico generalista e ter outros aspectos da sua saúde assistidos. Acho que a integralidade somente ocorre quando o paciente está inserido numa rede de serviço, e não apenas no serviço de saúde mental. Integralidade implica rede, necessariamente.

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